quarta-feira, 8 de maio de 2013

Uma Faca Só Lâmina

Uma Faca Só Lâmina
João Cabral de Melo Neto


ou Serventia das idéias fixas


Para Vinícius de Morais


Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;
assim como uma bala
do chumbo pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado
qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo
igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,
relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;
assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;
qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto
de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso,
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.




A


Seja bala, relógio,
ou a lâmina colérica,
é contudo uma ausência
o que esse homem leva.
Mas o que não está
nele está como uma bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.
Isso que não está
nele como a coisa ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.
Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):
porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina.
nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzida à sua boca.
que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.




B


Das mais surpreendentes
é a vida de tal faca:
faca, ou qualquer metáfora,
pode ser cultivada.
E mais surpreendente
ainda é a sua cultura:
medra não do que come
porém do que jejua.
Podes abandoná-la
essa faca intestina:
jamais a encontrarás
com a boca vazia.
Do nada ela destila
a azia e o vinagre
e mais estratagemas
privativos dos sabres.
E como faca que é,
fervorosa e energética,
sem ajuda dispara
sua máquina perversa:
a lâmina despida
que cresce ao se gastar,
que menos dorme
quanto menos sono há,
cujo muito cortar
lhe aumenta mais o corte
e se vive a se parir
em outras, como fonte.
(Que a vida dessa fac
se mede pelo avesso:
seja relógio ou bala,
ou seja faca mesmo.)




C


Cuidado com o objeto,
com o objeto cuidado,
mesmo sendo uma bala
desse chumbo ferrado,
porque seus dentes já
a bala os traz rombudos
e com facilidade
se em botam mais no músculo.
Mais cuidado porém
quando for um relógio
com o seu coração
aceso e espasmódico.
É preciso cuidado
por que não se acompasse
o pulso do relógio
com o pulso do sangue,
e seu cobre tão nítido
não confunda a passada
com o sangue que bate
já sem morder mais nada.
Então se for faca,
maior seja o cuidado:
a bainha do corpo
pode absorver o aço.
Também seu corte às vezes
tende a tornar-se rouco
e há casos em que ferros
degeneram em couro.
O importante é que a faca
o seu ardor não perca
e tampouco a corrompa
o cabo de madeira.




D


Pois essa faca às vezes
por si mesma se apaga.
É a isso que se chama
marébaixa da faca.
Talvez que não se apague
e somente adormeça.
Se a imagem é relógio,
a sua abelha cessa.
Mas quer durma ou se apague:
ao calar tl motor,
a alma inteira se torna
de um alcalino teor
bem semelhante à neutra
substância, quase feltro,
que é a das almas que não
têm facas-esqueleto.
E a espada dessa lâmina,
sua chama antes acesa,
e o relógio nervoso
e a tal bala indigesta,
tudo segue o processo
de lâmina que cega:
faz-se faca, relógio
ou bala de madeira,
bala de couro ou pano,
ou relógio de breu,
faz-se faca sem vértebras,
faca de argila ou mel.
(Porém quando a maré
já nem se espera mais,
eis que a faca ressurge
com todos seus cristais.)




E


Forçoso é conservar
a faca bem oculta
pois na umidade pouco
seu relâmpago dura
(na umidade que criam
salivas de conversas,
tanto mais pegajosas
quanto mais confidências).
Forçoso é esse cuidado
mesmo se não é faca
a brasa que te habita
e sim relógio ou bala.
Não suportam também
todas as atmosferas:
sua carne selvagem
quer câmaras severas.
Mas se deves sacá-los
para melhor sofrê-los,
que seja algum páramo
ou agreste de ar aberto.
Mas nunca seja ao ar
que pássaros habitem.
Deve ser a um ar duro,
sem sombra e sem vertigem.
E nunca seja à noite,
que estas têm as mãos férteis,
Aos ácidos do sol
sseja, ao sol do Nordeste,
à febre desse sol
que faz de arame as ervas,
que faz de esponja o vento
e faz de sede a terra.




F


Quer seja aquela bala
ou outra qualquer imagem,
seja esmo um relógio
a ferida que guarde,
ou ainda uma faca
que só tivesse lâmina,
de todas as imagens
a mais voraz e gráfica,
ninguém do próprio corpo
poderá retirá-la,
não importa se é bala
nem se é relógio ou faca,
nem importa qual seja
a raça dessa lâmina:
faca mansa de mesa,
feroz pernambucana.
E se não a retira
quem sofre sua rapina,
menos pode arrancá-la
nenhuma mão vizinha.
Não pode contra ela
a inteira medicina
de facas numerais
e aritméticas pinças.
Nem ainda a polícia
com seus cirurgiões
e até nem mesmo o tempo
como os seus algodões.
E nem a mão de quem
sem o saber plantou
bala, relógio ou faca,
imagens de furor.




G


Essa bala que um homem
leva às vezes na carne
faz menos rarefeito
todo aquele que a guarde
O que um relógio implica
por indócil e inseto,
encerrado no corpo
faz este mais desperto.
E se é faca a metáfora
do que leva no músculo,
facas dentro de um homem
dão-lhe maior impulso.
O fio de uma faca
mordendo o corpo humano,
de outro corpo ou punhal
tal corpo vai armando,
pois lhe mantendo vivas
todas as molas da alma
dá-lhes ímpeto de lâmina
e cio de arma branca,
além de ter o corpo
que a guarda crispado,
insolúvel no sono
e em tudo quanto é vago,
como naquela história
por alguém referida
de um homem que se fez
memória tão ativa
que pôde conservar
treze anos na palma
o peso de uma mão,
feminina, apertada.




H


Quando aquele que os sofre
trabalha com palavras,
são úteis o relógio,
a bala e, mais, a faca.
Os homens que em geral
lidam nessa oficina
têm no almoxarifado
só palavras extintas:
umas que se asfixiam
por debaixo do pó
outras despercebidas
em meio a grandes nós;
palavras que perderam
no uso todo o metal
e a areia que detém
a atenção que lê mal.
Pois somente essa fraca
dará a tal operário
olhos mais frescos para
o seu vocabulário
e somente essa faca
e o exemplo de seu dente
lhe ensinará a obter
de um material doente
o que em todas as facas
é a melhor qualidade:
a agudeza feroz ,
certa eletricidade,
mais a violência limpa
que elas têm, tão exatas,
o gosto do deserto,
o estilo das facas.




I


Essa lâmina adversa,
como o relógio ou a bala,
se torna mais alerta
todo aquele que a guarda,
sabe acordar também
os objetos em torno
e até os próprios líquidos
podem adquirir ossos.
E tudo o que era vago,
toda frouxa matéria
para quem sofre a faca
ganha nervos, arestas.
Em volta tudo ganha
a vida mais intensa,
Com nitidez de agulha
e presença de vespa.
Em cada coisa o lado
que corta se revela,
e elas que pareciam
redondas como a cera
despem-se agora do
caloso da rotina,
pondo-se a funcionar
com todas suas quinas
Pois entre tantas coisas
que também já não dormem,
o homem a quem a faca
corta e empresta seu corte,
sofrendo aquela lâmina
e seu jato tão frio,
passa, lúcido e insone,
vai fio contra fios.




*

De volta dessa faca,
amiga ou inimiga,
que ais condensa o homem
quanto mais o mastiga;
de volta dessa faca
de porte tão secreto
que deve ser levada
como o oculto esqueleto;
da imagem em que mais
me detive, a da lâmina,
porque é de todas elas
certamente a mais ávida;
pois de volta da faca
se sobe a outra imagem,
àquela de um relógio
picando sob a carne,
e dela àquela outra,
a primeira, a da bala,
que tem o dente grosso
porém forte a dentada
e daí à lembrança
que vestiu tais imagens
e é muito mais intensa
do que pode a linguagem,
w afinal à presença
da realidade, prima,
que gerou a lembrança
e ainda a gera, ainda,
por fim à realidade,
prima e tão violenta
que ao tentar apreendê-la
toda imagem rebenta.

O cão sem plumas - João Cabral de Melo Neto

O cão sem plumas
João Cabral de Melo Neto


I. Paisagem do Capibaribe

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.

O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.

Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.

Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.

Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.

Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.

E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.

Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.

Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.

Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.

Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.

(É nelas,
mas de costas para o rio,
que "as grandes famílias espirituais" da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).

Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?

Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
Em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?


II. Paisagem do Capibaribe

Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.

Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.

Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.

Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).

O rio sabia
daqueles homens sem plumas.
Sabia
de suas barbas expostas,
de seu doloroso cabelo
de camarão e estopa.

Ele sabia também
dos grandes galpões da beira dos cais
(onde tudo
é uma imensa porta
sem portas)
escancarados
aos horizontes que cheiram a gasolina.

E sabia
da magra cidade de rolha,
onde homens ossudos,
onde pontes, sobrados ossudos
(vão todos
vestidos de brim)
secam
até sua mais funda caliça.

Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.

Porque é na água do rio
que eles se perdem
(lentamente
e sem dente).
Ali se perdem
(como uma agulha não se perde).
Ali se perdem
(como um relógio não se quebra).

Ali se perdem
como um espelho não se quebra.
Ali se perdem
como se perde a água derramada:
sem o dente seco
com que de repente
num homem se rompe
o fio de homem.

Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama; numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama.

Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.

Difícil é saber
se aquele homem
já não está
mais aquém do homem;
mais aquém do homem
ao menos capaz de roer
os ossos do ofício;
capaz de sangrar
na praça;
capaz de gritar
se a moenda lhe mastiga o braço;
capaz
de ter a vida mastigada
e não apenas
dissolvida
(naquela água macia
que amolece seus ossos
como amoleceu as pedras).


III. Fábula do Capibaribe

A cidade é fecundada
por aquela espada
que se derrama,
por aquela
úmida gengiva de espada.

No extremo do rio
o mar se estendia,
como camisa ou lençol,
sobre seus esqueletos
de areia lavada.

(Como o rio era um cachorro,
o mar podia ser uma bandeira
azul e branca
desdobrada
no extremo do curso
— ou do mastro — do rio.

Uma bandeira
que tivesse dentes:
que o mar está sempre
com seus dentes e seu sabão
roendo suas praias.

Uma bandeira
que tivesse dentes:
como um poeta puro
polindo esqueletos,
como um roedor puro,
um polícia puro
elaborando esqueletos,
o mar,
com afã,
está sempre outra vez lavando
seu puro esqueleto de areia.

O mar e seu incenso,
o mar e seus ácidos,
o mar e a boca de seus ácidos,
o mar e seu estômago
que come e se come,
o mar e sua carne
vidrada, de estátua,
seu silêncio, alcançado
à custa de sempre dizer
a mesma coisa,
o mar e seu tão puro
professor de geometria).

O rio teme aquele mar
como um cachorro
teme uma porta entretanto aberta,
como um mendigo,
a igreja aparentemente aberta.

Primeiro,
o mar devolve o rio.
Fecha o mar ao rio
seus brancos lençóis.
O mar se fecha
a tudo o que no rio
são flores de terra,
imagem de cão ou mendigo.

Depois,
o mar invade o rio.
Quer
o mar
destruir no rio
suas flores de terra inchada,
tudo o que nessa terra
pode crescer e explodir,
como uma ilha,
uma fruta.

Mas antes de ir ao mar
o rio se detém
em mangues de água parada.
Junta-se o rio
a outros rios
numa laguna, em pântanos
onde, fria, a vida ferve.

Junta-se o rio
a outros rios.
Juntos,
todos os rios
preparam sua luta
de água parada,
sua luta
de fruta parada.

(Como o rio era um cachorro,
como o mar era uma bandeira,
aqueles mangues
são uma enorme fruta:

A mesma máquina
paciente e útil
de uma fruta;
a mesma força
invencível e anônima
de uma fruta
— trabalhando ainda seu açúcar
depois de cortada —.

Como gota a gota
até o açúcar,
gota a gota
até as coroas de terra;
como gota a gota
até uma nova planta,
gota a gota
até as ilhas súbitas
aflorando alegres).


IV. Discurso do Capibaribe

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.

Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geléias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.

Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.

Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).